sábado, 9 de abril de 2011

Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na Gália I

História Eclesiástica - Eusébio Cesaréia (continuação)

Boa Leitura!

1.Foi pois a Gália o país em que se preparou o estádio, lugar dos fatos mencionados. Duas metrópoles eram célebres por sua distinção e por sua importância entre as outras: Lion e Viena. Ambas são atravessadas pelo Ródano, que flui ao longo de todo o país com grande caudal.
2.As ilustríssimas igrejas daquela região transmitiram às igrejas da Ásia e Frígia312 a carta sobre os mártires, e narram o ocorrido da seguinte maneira. Citarei suas próprias palavras.
3."Os servos de Cristo que peregrinam em Viena e em Lion da Gália, aos irmãos que na Ásia e na Frígia compartilham conosco a mesma fé e a mesma esperança da redenção: paz, graça e glória por parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor."
4.Depois, em continuação, seguem dizendo outras coisas como prólogo e dão início a seu relato nos seguintes termos: "Descrever pois, com justiça a magnitude desta tribulação daqui, o grau de irritação dos pagãos contra os santos e o número de sofrimentos que os bem-aventurados mártires suportaram, nem está em nossa capacidade nem sequer é possível encerrar em um escrito.
5.E ocorreu que o adversário313 atacou com todas as suas forças, como prelúdio já do descaramento de sua vinda iminente. Meteu-se por todos os lados, acostumando os seus e exercitando-os de antemão contra os servos de Deus, de forma que não só nos expulsam das casas, dos banhos e das praças, mas que inclusive proíbem que algum de nós deixe-se ver de qualquer forma em qualquer lugar que seja.
6.Mas a graça de Deus opunha-se a sua estratégia: retinha os fracos e apresentava à frente uma formação de sólidas colunas, capazes de atrair sobre si, com sua paciência, todo o ímpeto do malvado. Estes marcharam a seu encontro, suportando toda sorte de injúrias e castigos314. Considerando pouco o que era muito, apressavam seu passo para Cristo e mostravam realmente que os sofrimentos do tempo presente não são comparáveis com a glória que está para ser revelada em nós315.
7.Em primeiro lugar suportaram generosamente os assaltos massivos de toda a plebe: insultos, golpes, sacudidas, rapinas, apedrejamentos, passagem por apertos e tudo quanto fosse do gosto de uma plebe enfurecida contra pessoas que considera odiosas e inimigas.
8.E depois de serem conduzidos a praça pública e de serem julgados pelo tribuno e pelos magistrados da cidade em presença de toda a multidão, foram encerrados no cárcere até a chegada do governador.
9.Mais tarde conduziram-nos ante o governador. Como estes usou de toda sua crueldade contra nós, um dos irmãos, Vetio Epágato, que possuía em plenitude o amor a Deus e ao próximo e cuja conduta tinha sido tão estrita que, sendo ainda jovem, fez-se merecedor do testemunho do ancião Zacarias, já que havia caminhado irrepreensivelmente em todos os mandamentos e preceitos do Senhor, diligente em todo serviço ao próximo, com muito zelo com Deus e fervor de espírito, por ser de tal índole, não suportou que se procedesse contra nós com um juízo tão irracional. Fortemente indignado, pediu para ser também ele ouvido e defendeu, em favor dos irmãos, que entre nós nada há de ateu nem de ímpio.
10.Os que rodeavam o tribunal passaram a gritar contra ele - pois era homem importante -, e o juiz, não tolerando a petição assim proposta por ele, queria unicamente saber se também era cristão. Como Vetio o confessasse com voz claríssima, também ele foi recebido nas fileiras dos mártires. Foi chamado consolador316 dos cristãos, pois dentro de si tinha o consolador, o Espírito de Zacarias, o que havia mostrado com a plenitude de seu amor achar bom sair em defesa dos irmãos e expor sua própria vida, porque era e continua sendo genuíno discípulo de Cristo, que vai atrás do Cordeiro onde quer que este vá.
11.A partir daqui, os demais se dividem: aparecem claramente os preparados para dar testemunho, os que com todo ser ardor completavam a confissão do martírio; mas também se manifestaram os que não estavam dispostos, destreinados e até fracos, incapazes de agüentar a tensão de um grande combate. Destes uns dez abortaram. Grande foi a aflição e imensa a dor que nos causaram e grave o dano causado ao entusiasmo dos outros que não haviam sido presos com eles e que, apesar de estar sofrendo toda classe de horrores, contudo, assistiam os mártires e não os abandonaram.
12.Mas então todos ficamos muito aterrados ante a incerteza da confissão, não por temor aos castigos, mas porque víamos como distante o fim e temíamos que alguém sucumbisse.
13.Mesmo assim, a cada dia detinham os que eram dignos de completar o número daqueles, tanto que juntaram todas as pessoas importantes das duas igrejas, graças às quais, sobretudo, tem importância os assuntos daqui.
14.Foram presos também alguns pagãos, criados dos nossos, quando o governador mandou que se buscassem todos os nossos. Estes, pelas insídias de Satanás, temendo os tormentos que viam padecer os santos e forçados a isto pelos soldados, acusaram-nos falsamente de ceias canibais, de promiscuidades edípicas e de tantas outras coisas que para nós não é lícito nem dizer nem pensar, nem mesmo crer que tais coisas tenham ocorrido entre os homens.
15. Quando este rumor se espalhou, todos se revoltaram como feras contra nós, tanto que, se a princípio alguns se comportaram com moderação por amizade, começaram então a mostrar-se muito hostis e raivosos contra nós. Estava se cumprindo o que dissera nosso Senhor: Virá um tempo em que todo aquele que vos matar pensará estar prestando culto a Deus317.
16.Desde então os santos mártires suportaram castigos que excedem a toda descrição, enquanto Satanás se esforçava para arrancar-lhes também alguma palavra blasfema.
17.Toda a fúria da multidão, do governador e dos soldados abateu-se transbordante sobre o diácono Santos, de Viena, sobre Maturo, recém-baptizado mas nobre lutador, sobre Atalo, oriundo de Pérgamo e que sempre havia sido coluna e fundamento dos cristãos daqui, e sobre Blandina, por meio da qual Cristo demonstrou que o que entre os homens parece vulgar, disforme e facilmente desprezável, por parte de Deus é considerado digno de grande glória devido ao amor a Ele, amor que se mostra na força e que não se vangloria da aparência.
18.Efetivamente, enquanto todos nós estávamos temerosos e sua própria senhora segundo a carne - também ela uma de nossos mártires combatentes -temíamos que por fraqueza de seu corpo não tivesse forças para proclamar livremente sua confissão, Blandina viu-se cheia de uma força tão grande que extenuava e esgotava aqueles que, em turnos e de todas as maneiras, torturavam-na desde o amanhecer até o ocaso; eles mesmos confessavam que estavam vencidos, sem nada poder fazer com ela, e se admiravam de como podia manter-se com alento estando todo seu corpo dilacerado e aberto, e atestavam que um só tipo de suplício bastaria para tirar a vida, sem necessidade de tantos e tão terríveis.
19.Mas a bem-aventurada mulher, como nobre atleta, rejuvenescia na confissão, e para ela era recuperação de forças, descanso e ausência de dor em meio aos acontecimentos o dizer: "Sou cristã, e nada de mal é feito entre nós!"
20.Também Santos suportou nobremente, além de toda medida humana, todos os maus-tratos que provêm dos homens. Os iníquos esperavam que pela persistência e magnitude dos tormentos ouviriam dele algo indevido, mas resistiu-lhes com tal firmeza, que não revelou nem seu próprio nome, nem de sua família, nem da cidade de onde vinha nem se era escravo ou se era livre, mas a tudo que lhe perguntavam respondia em latim: "Sou cristão!" Em lugar de seu nome, de sua cidade, de sua família e de tudo, isto é o que confessava sucessivamente, e nenhuma outra palavra ouviram dele os pagãos.
21.Por esta razão, tanto o governador quanto os torturadores ensandeceram-se de tal maneira contra ele que, quando já não sabiam o que fazer-lhe, por último aplicaram-lhe placas de cobre em brasa aos membros mais delicados de seu corpo.
22.Estes certamente se queimaram, mas ele se manteve inflexível e firme, constante na confissão, borrifado e fortalecido pela fonte santa da água viva que brota das entranhas de Cristo318.
23.Seu corpo atestava o ocorrido: todo ele era uma chaga, todo confusão, moído e tendo perdido toda forma humana; mas Cristo padecia nele e realizava grandes glórias anulando o adversário e mostrando, para exemplo dos demais, que nada há de temível onde está o amor do Pai, nem doloroso onde está a glória de Cristo.
24.Efectivamente, depois de alguns dias, aqueles malvados começaram novamente a torturar o mártir, pensando que poderiam vencê-lo se, estando suas carnes inchadas e inflamadas, lhe aplicassem os mesmos suplícios agora que nem sequer suportava o toque das mãos, ou então que, morrendo em meio aos tormentos, infundiria temor aos outros. Mas não somente nada disso aconteceu com ele, mas, contra o que todos pensavam, recuperou-se, e seu corpo se endireitou entre os tormentos que seguiram e recobrou sua forma original e o uso dos membros, de maneira que a segunda tortura foi para ele não um suplício, mas cura pela graça de Cristo.
25.E Biblida também, uma das que haviam renegado. O diabo já pensava que a havia devorado319, mas querendo também condená-la por blasfémia, conduziu-a à tortura e a forçava a declarar sobre nós aquelas ímpias calúnias, já seguro de sua fragilidade e covardia.
26.Mas ela, no tormenta, voltou a si e, por assim dizer, despertou de um sono profundo. Recordando então, graças àqueles castigos temporários, o castigo eterno no inferno320, pôs-se pelo contrário, a replicar aos detractores e dizia: "Como poderiam estas pessoas comer uma criança se nem sequer lhes é permitido comer sangue de animais irracionais?"321 E desde esse instante passou a confessar que também ela mesma era cristã, e foi incorporada à fila dos mártires.
27.Anulados por Cristo os tormentos dos tiranos por meio da constância dos santos, o diabo pôs-se a imaginar outros recursos, o encerramento no pior e mais escuro lugar do cárcere, a distensão dos pés no cepo, separados até o quinto furo, e os demais suplícios que os funcionários irritados e endiabrados costumavam infligir aos presos, tanto que no cárcere a maior parte morreu asfixiada, ao menos quando o Senhor quis que assim morressem, mostrando sua própria glória.
28. Efectivamente, alguns que haviam sido cruelmente torturados até o ponto de parecer que não poderiam viver ainda que se lhes desse todo tipo de cuidados, permaneciam no cárcere, desprovidos, naturalmente, de toda assistência humana; mas fortalecidos pelo Senhor em seus corpos e em suas almas, animavam e consolavam os demais. Outros, em compensação, jovens e recém-detidos, cujos corpos não haviam sido torturados antes, não suportavam o peso do
29.O bem-aventurado Potino, a quem fora confiado o ministério do episcopado de Lion, passava já da idade de noventa anos e seu corpo estava fraco. Por causa desta sua debilidade corporal apenas conseguia respirar, mas por seu grande desejo do martírio322, o ardor de seu espírito devolvia-lhe as forças. Também ele foi arrastado ao tribunal com o corpo desfazendo-se pela velhice e pela enfermidade, mas com sua alma conservada para que por ela Cristo triunfasse.
30.Levado pelos soldados ante o tribunal com acompanhamento das autoridades da cidade e de toda a plebe gritando-lhe toda classe de injúrias, como se ele mesmo fosse o Cristo, deu formoso testemunho.
31.Quando o governador perguntou-lhe quem era o Deus dos cristãos, disse: "Se fores digno, o conhecerás." Então arrastaram-no sem cuidados e sofreu diversas feridas; os que estavam perto faziam-lhe todo tipo de afronta com pés e mãos, sem o menor respeito por sua idade, e os que estava distantes atiravam cada um o que tivesse à mão, e todos criam errar gravemente e ser uns ímpios se omitissem alguma insolência contra ele, pois pensavam que assim vingavam seus deuses. Ele, apenas respirando, foi jogado no cárcere, e ao fim de alguns dias entregou sua alma.


312 A explicação tradicional sobre a relação de pontos tão distantes é que as igrejas destas cidades seriam formadas principalmente por cristãos emigrados da Ásia Menor, mas existe a possibilidade de que Eusébio tenha confundido a Galácia do Ponto com a Gália do ocidente.
313 Depois de destacar a irritação popular contra os cristãos, declara-se o causador: o "adversário", Satanás.
314 Hb 10:33.
315 Rm 8:18.
316 Pode ser traduzido também como "advogado".
317 Jo 16:2.
318 Jo 7:38; 19:34; Ap 21:6.
319 1Pe 5:8.
320 Mt 25:46.
321 Alusão à norma apostólica de At 15:29, não implica que ainda estivesse vigente em Lion.
encerramento e morriam lá dentro.

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