domingo, 30 de janeiro de 2011

Efeitos do pentecoste

Philip Schaff - "History of the Christian Church" (continuação)

"porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os levará às fontes das águas vivas; e Deus enxugará toda lágrima de seus olhos." Apocalipse 7:17

Nota: Sobre o Sacerdócio

Da Farrar’s Life and Work of St. Paul (I. 93): "Este primeiro Pentecostes marcou um eterno momento no destino da humanidade, no qual nenhum leitor da história certamente irá negar sem dúvida, em todas as épocas desde então, os filhos de Deus têm numa medida desconhecida anteriormente, são ensinados pelo Espírito de Deus. Sem dúvida, desde então, de uma forma latente, podemos saber que o Espírito de Cristo habita em nós. Sem dúvida, podemos desfrutar de um sentido mais próximo da união com Deus em Cristo que foi concedida aos santos da antiga dispensação, e uma certeza grata, no qual vemos os dias em que reis e profetas desejariam ver e não viram, e ouvir as verdades que queriam ouvir e não ouviram. E esta nova dispensação começou a partir daquele momento, em toda a sua plenitude. Não foi a consagração exclusiva de um sacerdócio separado, nenhuma investidura isolada de um apostolado estreito. Foi a consagração de uma Igreja inteira - seus homens, suas mulheres, seus filhos – para serem todos 'uma geração eleita, sacerdotes reais, uma nação santa, um povo peculiar, 'foi uma dádiva, de uma graça totalmente livre, significava em última análise alargar a toda a humanidade. Cada um dos cento e vinte não foi o destinatário excepcional de uma bênção ou testemunho de uma revelação, mas o precursor e representante de miríades mais. E esse milagre não foi apenas transitório, mas é constantemente renovado. Não é um ruído sonoro ou uma explosão de luz, talvez visto por um momento, mas sim uma energia de vida e uma incessante inspiração. Não é um símbolo visível para um punhado de almas humanas recolhidas na sala de cima de uma casa judaica, mas um vento vivificante, que passará a respirar em todas as épocas da história do mundo, uma maré de luz que está rolando, e deve rolar, de costa a costa até que a Terra esteja cheia do conhecimento do Senhor como as águas cobrem o mar".

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Que tratados de Justino chegaram a nós

História Eclesiástica - Eusébio Cesaréia (continuação)

Boa Leitura!

1.Justino deixou-nos um grande número de obras, extremamente úteis, testemunho de uma inteligência cultivada e empenhada nas coisas divinas. A elas remetemos os estudiosos, depois de assinalar propriamente as que chegaram a nosso conhecimento290.
2.Dele há primeiramente um tratado dirigido a Antonino, o chamado Pio, e a seus filhos, assim como ao senado romano, em favor de nossas doutrinas; e outro que contém uma segunda Apologia em defesa de nossa fé, que dirigiu ao sucessor e homónimo do citado imperador Antonino Vero291, cuja época estamos registando até o presente.
3.Há também esta obra, o Discurso aos gregos, na qual, depois de estender-se largamente sobre os problemas apresentados a nós e aos filósofos gregos, discorre sobre a natureza dos demônios. Mas não é urgente citá-lo aqui.
4.Também chegou a nós outra obra sua contra os gregos, que intitulou Refutação; e além destas, outra Sobre a monarquia de Deus, que compôs com elementos recolhidos não somente de nossas Escrituras, mas também dos livros dos gregos.
5.Escreveu ainda o intitulado Psaltes e outro, de uso escolar, Sobre a alma, no qual propõe diversas questões sobre o problema que discute, e lista as opiniões dos filósofos gregos, prometendo contradizê-las e expor a sua própria em outro escrito.
6.Compôs também um Diálogo contra os judeus, diálogo que sustentou na cidade de Éfeso com Trífon, o mais ilustre dos hebreus de então. Nele explica de que modo a graça divina o levou à doutrina da fé, com que empenho inicialmente se inclinava para as ciências filosóficas e que entusiasmo havia depositado na busca da verdade.
7.Na mesma obra diz dos judeus que eles foram os que prepararam uma conspiração contra a doutrina de Cristo e expõe este pensamento dirigindo-se a Trífon: "Não somente não vos haveis arrependido do mal que fizestes, mas até, tendo escolhido então alguns homens especialmente aptos, os enviastes desde Jerusalém a toda a terra dizendo que havia aparecido um seita atéia de cristãos e enumerando as mesmas calúnias que todos os que nos desconhecem repetem contra nós, de modo que não somente sois culpados de vossa própria injustiça, mas também, simplesmente, da de todos os demais homens."
8.Escreve também que inclusive até seu tempo seguiam brilhando os carismas proféticos na Igreja, e menciona o Apocalipse de João dizendo claramente que é do apóstolo. E cita igualmente alguns ditos de profetas, provando a Trífon que os judeus os eliminaram da Escritura. Conhecem-se ainda outros numerosos trabalhos seus, conservados entre muitos irmãos.
9.E assim é que inclusive aos antigos pareceram do maior interesse os tratados de Justino, tanto que Irineu cita suas palavras. Efectivamente, no livro IV Contra as heresias diz textualmente: "E muito bem disse Justino, em sua obra Contra Márcion, que não poderia crer nem no próprio Senhor se este lhe anunciasse outro Deus diferente do demiurgo." E no livro V da mesma obra com estas palavras: "E muito bem disse Justino que, antes da vinda do Senhor, nunca Satanás se atreveu a blasfemar contra Deus; como se ainda não soubesse de sua condenação."
10. Isto era obrigação dizer para animar os estudiosos a um trato aplicado e solícito para com as obras deste autor. Tais eram as notícias que a ele se referem.


290 De todas, só chegaram a nós as chamadas Apologias I e II e o Diálogo com Trifon, ainda que com algumas
lacunas.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Tempo e Lugar II

Philip Schaff - "History of the Christian Church" (continuação)

"O Senhor está perto dos contritos de coração, e salva os que têm o espírito abatido." Salmos 33:19

Boa leitura!

(2) Quanto ao local, Lucas chama-o simplesmente de "casa" uma (oi \ ko ", Actos 2:2), o que dificilmente pode significar o Templo (não mencionados até 2:46). Foi provavelmente o mesmo "quarto superior" ou câmara que tinha mencionado no capítulo anterior, como o conhecido local de encontro habitual dos discípulos após a ascensão, a (uJperw '/on ...ou| h\san katamevnonte", 1:13). Como, Neander, Meyer, Ewald, Wordsworth, Plumptre, Farrar, e outros. Talvez tenha sido a mesma câmara em que nosso Senhor participou da última ceia pascal com eles (Marcos 14:14, 15; Mt 26:28).. A Tradição localiza ambos os eventos no "Cenáculo", uma sala num prédio irregular chamado "David's Tomb", que está fora de Zion Gate alguma distância do Monte. Moria. (Veja William M. Thomson, A terra e o Livro, nova ed. 1880, vol. I. p. 535 sq). Mas Cirilo de Jerusalém (Catech. XVI. 4) afirma que o apartamento onde o Espírito Santo desceu mais tarde foi transformado numa igreja. O quarto superior com um terraço típico de casas orientais. (UJperw '/ sobre [} liYh), como muitas vezes usado como um lugar de devoção (comp. Actos 20:8). Mas, uma casa particular não poderia albergar tão grande multidão, devemos supor que Pedro dirigiu o povo na rua a partir do telhado ou da escadaria exterior.

Muitos dos clérigos mais velhos, como também Olshausen, Baumgarten, Wieseler, Lange, Thiersch (e eu, em primeira ed. Da PA. Ch., P. 194), localize o cenário de Pentecostes no templo, ou melhor, um dos trinta edifícios laterais em torno dele, que Josefo chama de "casas" (oi kou [") em sua descrição do templo de Salomão (Ant. VIII. 3, 2), ou no pórtico de Salomão, que se manteve desde o primeiro templo e, onde os discípulos reuniram-se depois (Actos 5:12, comp. 03:11) Em favor deste ponto de vista, pode-se dizer que concorda melhor com o costume dos apóstolos (Lucas 24:53, Actos 2:46, 5:12, 42), no tempo do milagre (a hora da manhã de oração), e com a reunião de uma grande multidão de pelo menos três mil ouvintes, e que parece dar mais solenidade ao evento, quando teve lugar no simbólico e santuário típico da velha dispensação. Mas é difícil conceber que os judeus hostis deveriam ter permitido que os pobres discípulos de ocupar um dos edifícios do templo e não interferem com a cena. Na dispensação do Espírito, que agora começou, a pior de habitação, e o corpo do cristão mais humilde tornaram-se no templo de Deus. Comp. João 4:24.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Dos mártires mencionados por Justino em sua própria obra

História Eclesiástica - Eusébio Cesaréia (continuação)

Boa leitura!

1. O mesmo autor, antes de seu próprio combate, menciona em sua primeira Apologia a outros mártires anteriores a ele. Também este relato é útil para nosso intento.
2.Escreve assim: "Uma mulher vivia com seu dissoluto marido, e ela mesma havia-se dado anteriormente à vida dissoluta. Mas, depois que conheceu os ensinamentos de Cristo, aprendeu a conter-se e tratava de persuadir seu marido a tornar-se casto também, apresentando os ensinamentos e anunciando-lhe o castigo que no fogo eterno terão os que não vivem castamente e conforme a recta razão.
3.Mas ele perseverava na mesma devassidão e com suas obras seguia afastando-se de sua esposa, pois a mulher, considerando ímpio seguir compartilhando o leito com um homem que buscava recursos de prazer por todos os meios, contra a lei da natureza e contra a justiça, quis divorciar-se.
4.E como os seus lhe suplicaram e a aconselharam que aguardasse ainda, com a esperança de que o homem pudesse um dia mudar, fazendo uma violência contra si mesma, esperou.
5.Mas depois que seu marido foi para Alexandria e ela teve notícia de que ali fazia coisas piores, para evitar compartilhar com ele as injustiças e impiedades permanecendo no matrimónio e compartilhando a mesa e o leito, deu-lhe o que entre vós se chama repudium e se separou.
6.Mas o bom de seu marido, que deveria alegrar-se de que sua mulher, antes entregue à vida fácil com criados e diaristas, desfrutando de bebedeiras e todo tipo de maldades, não somente havia cessado com todas estas práticas, mas que também queria que ele deixasse de fazer o mesmo, porque havia se separado sem que ele o quisesse, vai e a acusa de ser cristã.
7.E ela apresentou a ti, imperador, um libelo em que pedia, em primeiro lugar, que lhe fosse permitido dispor de seus bens, e depois, quando seus assuntos estivessem arranjados, apresentar sua defesa frente à acusação. E tu o permitiste.
8.Mas seu ex-marido, não podendo então dizer nada contra ela, voltou-se contra um tal Ptolomeu - a quem Urbicio havia imposto um castigo - porque havia sido mestre daquela nas doutrinas cristãs. Procedeu da seguinte maneira:
9.Ao Centurião que havia aprisionado Ptolomeu, e que era seu amigo, persuadiu a que se apoderasse de Ptolomeu e lhe dirigisse esta única pergunta: se era cristão. E Ptolomeu, que amava a verdade e não tinha o carácter embusteiro nem mentiroso, confessou que era cristão. O Centurião fez com que o acorrentassem, e durante muito tempo submeteu-o a castigo no cárcere.
10.E quando por último Ptolomeu foi conduzido à presença de Urbicio, também lhe perguntaram unicamente isto: se era cristão. E novamente, consciente do bem que havia recebido por meio da doutrina de Cristo, confessou a escola da divina virtude;
11.porque quem nega algo, o que quer que seja, ou nega porque o condena, ou rejeita a confissão porque considera a si mesmo indigno e alheio a isto. Nenhum destes casos enquadra o verdadeiro cristão.
12.E quando Urbicio mandou que o levassem à execução, um tal Lúcio, que também era cristão, vendo que a sentença era dada tão contra a razão, disse dirigindo-se a Urbicio: 'Qual é a causa de que tenhas condenado este homem sem haver provado que seja um adúltero, um fornicador, um homicida, um ladrão e sem que, em uma palavra, tenha cometido injustiça, mas somente porque confessou levar o nome de cristão? Tu, Urbicio, não julgas como corresponde ao imperador Pio nem ao filósofo que é o filho do César, nem tampouco ao senado sagrado.'
13.E Urbicio, sem nada responder, disse dirigindo-se também a Lúcio: 'Parece-me que também tu és cristão.' E como Lúcio respondeu: "Assim é!", mandou que também a este levassem à execução. Lúcio declarou que estava agradecido, pois - acrescentava - afastava-se de uns amos tão malvados e ia para Deus, seu bom Pai e Rei. E a um terceiro que se apresentou foi infligida a mesma pena." A isto Justino acrescentou, com razão e logicamente, as palavras que já citamos mais acima: "E eu mesmo espero ser vítima da conspiração de algum dos nomeados, etc."

domingo, 16 de janeiro de 2011

De como Justino o Filósofo, sendo de avançada idade, sofreu martírio pela doutrina de Cristo na cidade de Roma

História Eclesiástica - Eusébio Cesaréia (continuação)

Boa Leitura!

1.Por este mesmo tempo287, Justino, mencionado há pouco, depois de dedicar aos supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas, foi adornado com o sagrado martírio. O responsável pela conspiração foi o filósofo Crescente - homem que se esforçava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas ao cognome de cínico288 -, pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presença de seus ouvintes. Justino, com seu martírio acabou cingindo o prêmio da vitória da verdade da qual era embaixador.
2.Também isto foi previsto por ele mesmo, consumado filósofo que era, na mencionada Apologia, e tão claramente como de fato haveria de suceder-lhe. Estes são seus termos:
3."E eu mesmo espero ser vítima da conspiração de algum dos nomeados e ser agrilhoado ao cepo. Talvez por obra de Crescente, o amigo, não da sabedoria, mas da ruidosa jactância, já que não é justo chamar de filósofo um homem que em público atesta o que ignora, como quando diz que os cristãos são ateus e ímpios, fazendo assim para graça e gosto do vulgo extraviado no erro.
4.Porque, se é que nos ataca sem ter lido os ensinamentos de Cristo, é dos mais malvados e muito pior do que os ignorantes, os quais muitas vezes evitam conversar e atestar falsamente sobre o que ignoram. E se é que os leu sem entender a grandeza que há neles, ou se os entendeu, mas faz assim para não ser suspeito de ser cristão, então é muito mais ignóbil e malvado, escravo de uma opinião, ignorante e irracional, e do medo.
5.Porque quero que saibais que, havendo-lhe já proposto e feito perguntas deste gênero, dei-me conta e o convenci de que verdadeiramente não sabe nada. E como prova de que digo a verdade, se é que não vos remeteram os informes da discussão, estou disposto a fazer novamente as perguntas inclusive em vossa presença, tarefa que também seria digna de um imperador.
6.Mas se já vos são conhecidas minhas perguntas e as respostas daquele, tereis visto bem claramente que nada sabe de nossas coisas. Ou se o sabe, mas não se atreve a dizê-lo por causa dos ouvintes, como disse antes, não mostra ser um homem amante do saber, mas amante da opinião e depreciador da sentença de Sócrates289, digníssima de todo apreço".
7.Isto diz Justino. Segundo sua previsão, morreu vítima das maquinações de Crescente. Taciano, varão que em seus primeiros tempos professou as ciências helênicas, nas quais alcançou não pequena fama, e deixou em seus escritos muitos monumentos de seu engenho, narra em seu Discurso aos gregos como segue: "E o admirável Justino exclamou com toda justiça que os supracitados pareciam bandidos."
8. Depois de acrescentar algumas coisas sobre os filósofos, continua dizendo o que segue: "Crescente, pois, o que se aninhou na grande cidade, a todos suplantava como pederasta e estava inteiramente entregue ao amor do dinheiro.
9. Quem aconselhava a desprezar a morte, ele mesmo temia a morte de tal maneira que arranjou para precipitar Justino na morte, como num grande mal, porque este, pregando a verdade, havia provado que os filósofos eram uns glutões e embusteiros." Esta foi a causa do martírio de Justino.

287 Dos imperadores Marco Aurélio e Lúcio Vero.
288 De "kíon" = cachorro.
289 "A verdade deve ser honrada mais do que o homem, ainda que este homem seja Homero."

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

De como, nos tempos de Vero, Policarpo sofreu o martírio junto com outros da cidade de Esmirna

História Eclesiástica - Eusébio Cesaréia (continuação)

Desculpem não ter avisado aqui neste blog, que ia entrar em recesso durante estes dias que passaram!

Boa Leitura!

1.Neste tempo279 morreu mártir Policarpo, quando enormes perseguições estavam perturbando a Ásia. Creio ser muito necessário incluir na narrativa da presente história o relato de seu fim, ainda conservado por escrito.
2.A carta está escrita em nome da Igreja que ele governava, para as igrejas de (todo)280 lugar e declara o que se refere a ele nos seguintes termos:
3."A igreja de Deus que peregrina281 em Esmirna à igreja de Deus que reside como forasteira em Filomelio e a todas as comunidades da santa Igreja católica, forasteiras em todo lugar: a misericórdia, a paz e o amor de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo se multipliquem. Nós vos escrevemos, irmãos, o que se refere aos que sofreram martírio e ao bem-aventurado Policarpo, que com seu martírio, como se houvesse posto seu selo, fez cessar a perseguição."
4.Em continuação, e antes de referir-se a Policarpo, narram o referente aos mártires e descrevem a constância que mostraram ante os tormentos, pois contam que foram motivo de assombro para os que formavam círculo em torno deles e os contemplavam, ora dilacerados por açoites até o mais profundo de suas veias e artérias, de forma que podiam observar os órgãos de seus corpos, suas entranhas e seus membros, ora a outros, estendidos sobre conchas marinhas e pontas afiadas, e entregues por fim como pasto às feras, depois de ter passado por castigos e tormentos de toda espécie.
5.E contam que distinguiu-se especialmente o nobilíssimo Germânico, que com a ajuda da graça divina sobrepôs-se à covardia natural ante a morte do corpo. O Pro-cônsul queria persuadi-lo e alegava como pretexto sua idade, e suplicava-lhe que, já que estava na flor da juventude, tivesse compaixão de si mesmo; mas ele não vacilou, mas valentemente atraiu para si as feras, quase forçando-as e atiçando-as, para poder afastar-se mais rapidamente da vida injusta e criminosa daqueles.
6.Ante a gloriosa morte deste homem, a multidão toda pasmou-se vendo a valentia do mártir divino e a virtude de toda a linhagem dos cristãos, e todos a uma voz começaram a gritar: "Morram os ateus! Que se busque Policarpo!"
7.Tendo-se criado com a gritaria uma grande confusão, certo homem da Frigia, chamado Quinto, recentemente chegado da Frigia, ao ver as feras e tudo o mais que o ameaçava, sentiu enfraquecer-se a alma presa do medo e terminou por abandonar sua salvação.
8.Mas o relato do escrito acima demonstra que este homem lançou-se ante o tribunal de forma demasiado precipitada e sem a devida cautela. Assim pois, uma vez preso, proporcionou a todos um exemplo manifesto de que não é lícito arriscar-se em tais empresas temerária e incautamente. Assim terminava o que se referia a estes homens.
9.Quanto ao admirável Policarpo, quando ouviu estas coisas não se perturbou; seguiu observando firme e imutável seus costumes e queria permanecer ali, na cidade. Mas persuadido pelas súplicas dos que o rodeavam e pelos que o exortavam a afastar-se secretamente, retirou-se a uma propriedade não muito distante da cidade, e ali passava seu tempo em companhia de uns poucos, não fazendo outra coisa, noite e dia, que perseverar na oração ao Senhor. Nela pedia e suplicava pela paz, pedindo-a para as igrejas de todo o universo, o que aliás sempre fora costume seu.
10.E foi enquanto orava, numa visão que teve à noite três dias antes de sua prisão, quando viu que o travesseiro de sua cabeceira se consumia completamente abrasado pelo fogo. Despertado pelo facto, logo interpretou para os presentes o ocorrido, quase adivinhando o futuro, e anunciou claramente aos circunstantes que ele haveria de morrer por Cristo no fogo.
11.Assim pois, quando os que o procuravam com toda presteza já se achavam próximos, diz-se que ele se mudou para outro sítio, forçado novamente pela disposição e o amor dos irmãos, e ali apareceram pouco depois os perseguidores, que detiveram dois criados. Submeteram um deles a torturas e assim chegaram ao paradeiro de Policarpo.
12.Como chegaram a uma hora tardia, encontraram-no deitado num cómodo do piso superior, de onde era possível passar para outra casa; mas ele não quis fazê-lo e disse: "Cumpra-se a vontade de Deus."
13.Efectivamente, quando soube que estavam ali - como diz o relato —, desceu e pôs-se a conversar com eles, com o rosto radiante e cheio de suavidade, de forma que aqueles que antes não o conheciam acreditavam estar vendo um prodígio, ao considerar sua avançada idade e seu porte venerável e firme, e se admiravam de tanto esforço para prender um ancião.
14.Mas ele, sem tardar, manda que lhes ponham a mesa; logo convida-os a participar de abundante jantar e pede-lhes apenas uma hora para orar tranquilo. Como eles o permitiram, levantou-se e posse a orar, cheio da graça de Deus. Os presentes estavam assombrados ouvindo-o rezar, e muitos deles arrependeram-se já de que tivesse que ser executado um ancião tão venerável e digno de Deus.
15.Depois do que foi dito, o escrito que trata dele continua a narrativa literalmente como segue: "Quando terminou sua oração, depois de fazer memória de todos com quem havia tratado em sua vida, pequenos e grandes, ilustres e plebeus, e de toda a Igreja católica espalhada por toda a terra habitada, quando chegou a hora de partir, sentaram-no no lombo de um asno e conduziram-no à cidade. Era dia de grande sábado. Foram ao encontro do irenarca282 Herodes e seu pai, Nicetas, fizeram-no subir em seu carro, sentaram-no a seu lado e trataram de persuadi-lo dizendo: "Mas que há de mal em dizer: César é o Senhor! E em sacrificar, e com isto salvar a vida?"
16."Policarpo a princípio não respondia, mas como insistissem, disse: "Não tenho intenção de fazer o que me aconselhais.' Como não conseguiram seu intento, começaram a dizer-lhe palavras terríveis e fizeram-no descer a toda pressa, tanto que ao descer do carro arranhou a perna. Mas ele, sem virar-se, como se nada tivesse lhe acontecido, pôs-se animadamente a caminhar com pressa, conduzido ao estádio.
17.Era tal o ruído no estádio, que muitos não podiam ouvir. Entrando Policarpo no estádio, sobreveio uma voz do céu: 'Sê forte, Policarpo, e porta-te como homem.' Ninguém viu quem falou, mas muitos dos nossos ouviram a voz.
18.Quando o 'conduziam armou-se grande tumulto por parte dos que perceberam que haviam prendido Policarpo. Logo, quando se aproximou, perguntou-lhe o pro-cônsul se ele era Policarpo. Tendo ele confessado, aquele tentou persuadi-lo a que renegasse, dizendo: 'Tenha consideração a tua idade', e outras coisas parecidas a estas, como tem costume de dizer: 'Jura pelo gênio do César. Muda de pensar.' Diga: 'Morram os ateus!'
19.Mas Policarpo olhou com rosto severo a toda a turba que se encontrava no estádio, agitou para eles sua mão e, entre soluços e levantando a vista ao céu, disse: 'Morram os ateus!'
20.Mas quando o governador lhe pediu e disse: 'Jura e te soltarei; maldiz a Cristo', Policarpo disse: 'Oitenta e sei anos venho servindo-o e nenhum mal me fez. Como posso blasfemar contra meu rei, que me salvou?'
21.Como o pro-cônsul insistisse novamente e dissesse: 'Jura pela sorte do César', Policarpo respondeu: "Se abrigas a vã pretensão de que eu jure pelo génio do César, como dizes, fingindo que ignoras quem sou eu, com franqueza, escuta: sou cristão. Mas se é que queres aprender a doutrina do cristianismo, dá-me um dia e escuta".
22.Disse o pro-cônsul: "Convence ao povo". Policarpo replicou: "A ti considero digno do meu discurso, pois nos é ensinado render as honras devidas às autoridades e potestades estabelecidas por Deus283, enquanto não seja em detrimento nosso; mas a estes não os considero dignos de que me defenda perante eles.'
23.E o pro-cônsul disse: 'Tenho feras. A elas te lançarei se não mudas tua posição.' Mas ele respondeu: 'Chama-as, porque para nós não é possível mudar de posição se é do melhor para o pior. O bom é mudar do mau para o justo.'
24.Insistiu o pro-cônsul: 'Como não te arrependes, farei com que o fogo te dome se desprezas as feras'. Policarpo disse: "Ameaças com um fogo que arde algum tempo, mas depois de um pouco se apaga. E ignoras o fogo do juízo futuro e do castigo eterno, reservado aos ímpios. Mas, por que tardas? Traga o que quiseres.'
25.Enquanto dizia isto e muitas outras coisas mais, enchia-se de valor e de alegria, e seu rosto transbordava de graça, ao ponto de que não somente não caiu em confusão pelas coisas que lhe diziam, mas pelo contrário, foi o pro-cônsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do estádio apregoasse três vezes: 'Policarpo confessou que é cristão.'
26.Quando o arauto disse isso, toda a turba de gentios e de judeus que habitavam Esmirna se pôs a gritar com ânimo exaltado e grande vozerio: 'Este é o mestre da Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor de nossos deuses, o que ensinou a muitos a não sacrificar e a não adorar.'
27.Enquanto diziam isto, gritavam mais e mais, e pediam ao asiarca284 Felipe que lançasse um leão contra Policarpo. Disse ele que não podia, por estar terminado o combate de feras. Então acharam por bem gritar juntos que Policarpo fosse queimado vivo.
28.E devia cumprir-se a visão que teve de seu travesseiro quando, enquanto orava, viu que se consumia abrasado, e voltando-se para os fiéis que estavam com ele, disse-lhes em tom profético: 'Devo ser queimado vivo.'
29.Isto se fez mais depressa do que foi dito. A turba arrancou das oficinas e dos banhos a madeira e lenha miúda. Os mais entusiásticos em colaborar com a tarefa foram, como de costume, os judeus.
30.Quando a fogueira estava pronta, Policarpo despojou-se de todas suas roupas e, descingindo-se, tratou de soltar também seu calçado, coisa que antes não fazia pois cada fiel sempre se esforçava para ser o primeiro a tocar sua pele; porque a todo momento, antes mesmo de ter os cabelos brancos, havia sido honrado por causa de sua santa vida.
31.Em seguida foram colocando a sua volta os instrumentos preparados para a fogueira, mas quando já iam pregá-lo, disse-lhes: "Deixai-me assim, pois quem me dá esperar com pés firmes o fogo, me dará também, sem que seja necessária a segurança de vossos pregos, o manter-me firme na fogueira.' E não o pregaram, mas amarraram-no.
32.Com as mãos às costas e amarrado como um carneiro escolhido que é tirado de um grande rebanho como holocausto aceitável a Deus Todo-poderoso, disse:
33.'Pai de teu amado e bendito Filho Jesus Cristo, por quem recebemos o conhecimento acerca de ti, Deus dos anjos, das potestades, de toda a criação e de toda a raça dos justos que vivem em tua presença: Bendigo-te porque me julgaste digno deste dia e desta hora, para ter parte, entre o número dos mártires, no cálice de teu Cristo para ressurreição na vida eterna, tanto da alma como do corpo, na integridade do Espírito Santo.
34.Oxalá seja eu recebido em tua presença hoje, com eles, em sacrifício pio e aceitável!, segundo preparaste de antemão, como de antemão o manifestaste e o cumpriste, ó Deus sem mentira e verdadeiro!
35.Por esta razão, e por todas as coisas, te louvo, te bendigo, te glorifico, por meio do eterno e sumo sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja a glória a ti, com Ele no Espírito Santo, agora e nos séculos vindouros. Amém.'
36.Quando pronunciou o Amém e terminou sua oração, os encarregados do fogo acenderam-no, mas,
37.Ocorreu que o fogo, formando uma espécie de abóbada, como a vela de um navio enchida pelo vento, protegeu o corpo do mártir como uma muralha em torno. E ele estava no meio, não como carne queimada, mas como ouro e prata candentes no forno. E nós, em verdade, sentíamos uma fragrância tal, como exalada pelo incenso ou por qualquer outro aroma precioso.
38.Ao fim, vendo aqueles ímpios que o corpo não podia ser consumido pelo fogo, ordenaram ao confector285 que se aproximasse e cravasse nele sua espada;
39.feito isto, brotou um caudal de sangue tão grande que apagou o fogo e deixou assombrada a multidão que via a grande diferença entre os infiéis e os eleitos. Um destes foi este homem, admirável em demasia, mestre apostólico e profético de nossos dias, bispo que foi da igreja católica de Esmirna. Efectivamente, toda palavra que saiu de sua boca se cumpriu e se cumprirá.
40.Mas o rival e invejoso maligno, adversário da raça dos justos, ao ver a grandeza de seu martírio e a vida irrepreensível que havia levado desde o princípio e que já estava coroado com a coroa da integridade e já tinha alcançado um prémio indiscutível, dispôs as coisas de tal maneira que nós não recolhemos seu corpo, mesmo sendo muitos os que desejavam fazê-lo e ter parte em seus santos despojos.
41.Alguns pois, sugeriram a Nicetas, pai de Herodes e irmão de Alce, solicitar do governador que não entregasse o corpo do mártir, 'não ocorra que -disse - deixando o crucificado, comecem a render culto a este'. E diziam isto por sugestão e por pressão dos judeus, que também vigiavam quando nós íamos recolhê-lo da fogueira. Pois ignoram que nós jamais poderemos abandonar a Cristo, que padeceu pela salvação de todos os que no mundo inteiro se salvam, nem render culto a nenhum outro.
42.Porque a este adoramos por ser Filho de Deus; aos mártires, por outro lado, amamos justamente porque são discípulos e imitadores do Senhor, por causa de sua insuperável benevolência para com seu próprio rei e mestre. Oxalá também nós fôssemos participes de sua sorte e seus condiscípulos!
43.Vendo pois o Centurião a insistência dos judeus, pôs o corpo no meio, como de costume, e queimouo. E assim nós logo retiramos seus ossos, mais estimáveis que as pedras preciosas e mais dourados do que o ouro, e os guardamos em lugar conveniente.
44.Ali, reunidos enquanto nos seja possível, jubilosos e alegres, o Senhor nos concederá celebrar o aniversário de seu martírio, para memória dos que lutaram e para exercício e preparação dos que terão que lutar.
45.Este foi o final do bem-aventurado Policarpo. Ainda que sejam doze o número dos martirizados em Esmirna, junto com os de Filadélfia, ele é o único de quem todos mais se recordam, ao ponto de que inclusive os pagãos estão falando dele em todas as partes."
46.Deste final fez-se digno o admirável e apostólico Policarpo, cujo relato foi exposto pelos irmãos da igreja de Esmirna na carta deles que citamos. Neste mesmo escrito que trata dele estão juntos outros martírios que tiveram lugar na mesma Esmirna na mesma época que o martírio de Policarpo. Com eles pereceu também, entregue às chamas, Metrodoro, que se acredita que fosse presbítero da seita de Márcion.
47.Mas o mártir mais famoso dos de então foi Pionio. Suas sucessivas confissões, sua liberdade de expressão, suas apologias da fé em presença do povo e das autoridades, seus discursos didáticos ao povo e ainda sua amável acolhida aos que haviam sucumbido na prova da perseguição, assim como as exortações que, estando no cárcere, dirigia aos irmãos que a ele acudiam, e também os tormentos que depois sofreu, os suplícios que se juntaram, seu encravamento, sua integridade na fogueira e, depois de todas estas maravilhas, sua morte: tudo isto está contido de maneira muito completa no escrito que dele trata286. A ele remetemos quem se interessar: acha-se incluído entre os martírios dos antigos, por nós recompilados.
48.Conservam-se também as atas de outros mártires que foram martirizados em Pérgamo, cidade da Ásia: Carpo, Papilo e uma mulher, Agatonice, que acabaram gloriosamente depois de muitas e ilustres confissões.

279 Tempos de Marco Aurélio.
280 O original não tem a palavra "todo", mas esta aparece no endereçamento da carta abaixo.
281 Usa-se o termo "peregrino" ou "forasteiro" para expressar a condição do cristão como estando de passagem por
este mundo.
282 Espécie de comissário de polícia nomeado pelo procônsul para guardar a ordem pública nas cidades.
283 Rm 13:1; I Pe 2:13.
284 Presidente do concilio da província da Ásia, e como tal, sumo sacerdote e diretor dos jogos públicos.
fazendo-se uma grande chama, vimos um prodígio, aqueles aos quais foi dado vê-lo e que fomos
conservados para anunciar aos demais o ocorrido.
285 O confector era quem dava o golpe de misericórdia aos homens e às feras ao fim dos combates.
286 As Atas de Pionio.