sexta-feira, 15 de abril de 2011

Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na Gália II

História Eclesiástica - Eusébio Cesaréia (continuação)

Boa Leitura!

32.Foi então que teve lugar uma grande dispensação de Deus e se manifestou a imensa misericórdia de Jesus, como raramente havia ocorrido na comunidade dos irmãos, mas muito de acordo com o modo de Cristo.
33.Efectivamente, os que haviam renegado nas primeiras detenções foram também encarcerados e compartilhavam dos mesmos horrores, já que nesta ocasião de nada lhes serviu sua apostasia. Os que confessavam o que na verdade eram, eram encerrados como cristãos, sem nenhuma outra acusação; em compensação, os outros eram presos como homicidas e impuros e castigavam-nos em dobro do que aos demais323.
34.E assim os primeiros eram aliviados pela alegria do martírio, pela esperança do prometido, pelo amor de Cristo e o Espírito do Pai, enquanto que para estes outros, a consciência os atormentava grandemente, ao ponto de que, ao morrerem, podia-se reconhecer seu aspecto entre todos.
35.De fato, enquanto uns avançavam prazerosamente, com um misto de glória e graça abundantes em seus rostos, de modo que até suas correntes os cingiam como esplêndido adorno, como uma noiva ataviada com multicoloridos fios de ouro, e ao mesmo tempo espalhavam o suave odor de Cristo a ponto de fazer os outros pensarem que tinham-se ungido com perfumes mundanos, os outros, pelo contrário, faziam-no sombrios, cabisbaixos, disformes e cheios de rancor, e como se fosse pouco, até os pagãos tachavam-nos de ignóbeis e covardes: levavam a acusação de homicidas além de terem perdido seu nome venerabilíssimo, glorioso e vivificador. Quando os demais viram isto, reafirmaram se, e os que iam sendo detidos confessavam já sem vacilação e sem ter um único pensamento de cálculo diabólico."
36.Depois de juntar a isto algumas coisas intermediárias continuam: "Além disto, os géneros de morte dos mártires eram muito variados, pois com flores de toda espécie trançavam uma só coroa para oferece-la ao Pai, e assim era necessário que aqueles generosos atletas, depois de ter sustentado uma luta variada e ter vencido em toda a linha, recebessem a grande coroa da imortalidade324.
37.Assim pois, Maturo e Santos, assim como Blandina e Atalo, foram conduzidos às feras, ao local público e para espectáculo comum da inumanidade dos pagãos, pois o dia de luta de feras deu-se precisamente por causa dos nossos.
38.No anfiteatro, Maturo e Santos passaram novamente por todo tipo de tormentos como se antes não tivessem padecido absolutamente nada, ou melhor, como atletas que já venceram os adversários em muitos combates e que seguem lutando pela mesma coroa. De novo sofreram as passadas dos chicotes que ali eram de costume, os puxões das feras e tudo o que o povo enlouquecido, cada qual de seu lugar, gritava e ordenava. E como arremate de tudo, a cadeira de ferro, de onde os corpos, ao serem assados, lançavam ao público um odor de carne queimada.
39.Mas estes, nem com tudo isto recuavam, mas até aumentava-se-lhes o frenesi querendo vencer a constância daqueles. Mas nem assim conseguiram ouvir de Santos outra coisa além da frase de confissão que desde o começo costumava repetir.
40.Assim pois, os mártires, que depois de atravessar o grande combate seguiam com muita vida foram por fim sacrificados325, convertidos naquele dia em espectáculo para o mundo em substituição à variada série de combates de gladiadores.
41.Blandina, por outro lado, foi pendurada num madeiro e ficou exposta às feras, que se lançavam sobre ela. Apenas por vê-la pendendo em forma de cruz e com sua oração contínua, infundia-se muito ânimo aos outros combatentes, que neste combate viam com seus olhos corpóreos, através de sua irmã, aquele que por eles próprios havia sido crucificado. E assim ela persuadia aos que crêem n'Ele de que todo aquele que padece pela glória de Cristo entra em comunhão perpétua com o Deus vivo.
42.Por não ter sido tocada então por nenhuma fera, desceram-na do madeiro e de novo levaram-na ao cárcere, guardando-a para outro combate; assim, depois de vencer em mais lutas, por um lado tornaria implacável a condenação da serpente tortuosa326, e por outro animaria seus irmãos; ela. Pequena, frágil e desprezada, mas revestida do grande e invencível atleta, Cristo, bateria o adversário em sucessivos combates, e pelo combate seria cingida com a coroa da incorruptibilidade.
43.Atalo, por sua vez, também foi reclamado com grande empenho pela plebe (pois tinha grande renome). Entrou já como lutador treinado, graças a sua boa consciência, pois havia-se exercitado sinceramente na disciplina cristã e sempre havia sido entre nós uma testemunha da verdade.
44.Conduziram-no dando a volta ao anfiteatro, precedido de um cartaz no qual estava escrito em latim "Este é Atalo, o cristão"327, enquanto o público se inflamava terrivelmente contra ele. Ao saber o governador que ele era romano, mandou que o levassem com os demais que estavam no cárcere, acerca dos quais escreveu uma carta ao imperador e ficou esperando sua resposta.
45.O tempo que passou não foi ocioso nem estéril para eles, mas por sua paciência manifestou-se a imensa misericórdia de Cristo: por viverem eles, reviviam os mortos, e por serem mártires, outorgavam a graça aos que não o eram; assim, grande foi a alegria da Virgem Mãe ao recuperar vivos os que havia abortado mortos328.
46.Efectivamente, por meio deles, a maioria dos que haviam renegado voltavam sobre seus passos e de novo eram concebidos, reanimavam-se e aprendiam a confessar, e já com vida e fortalecidos, aproximavam-se do tribunal para serem novamente interrogados pelo governador, enquanto Deus, que não quer a morte do pecador329, preferindo o arrependimento, suavizava-lhes o caminho.
47.De fato, o imperador dispunha em seu edito que uns fossem degolados e os outros, contanto que renegassem, absolvidos330. Ao iniciar-se a grande festa local (comparece a ela grande multidão de pessoas de todas as raças), o governador fez levar novamente ao tribunal os bem-aventurados, como forma de teatro e de espectáculo para as multidões. Por isso interrogou-os novamente, e aos que pareciam ter título de cidadãos romanos, fazia decapitar331, enquanto os demais eram mandados às feras.
48.Mas Cristo foi grandemente glorificado naqueles que primeiramente haviam renegado e que agora, contra o que poderiam esperar os pagãos, confessavam sua fé. Estes, na verdade, eram interrogados privadamente, como para serem em seguida postos em liberdade, mas ao confessar sua fé foram sendo juntados à fila dos mártires. Ficaram fora, porém, os que nunca tiveram nem um vestígio de fé, nem o sentido da vestimenta nupcial332 nem ideia do temor a Deus, mas que com sua maneira de viver infamavam o caminho333, ou seja, os filhos da perdição.
49.Por outro lado, todos os demais foram incorporados à Igreja. Quando estavam sendo interrogados, um tal Alexandre, frígio de nascimento e médico por profissão, que tinha vivido muitos anos nas Gálias e era conhecido de quase todos por seu amor a Deus e pela franqueza de seu falar (pois também participava do carisma apostólico), achava-se de pé junto ao tribunal e com gestos animava-os à confissão, parecendo aos que rodeavam a tribuna como se tivesse dores de parto.
50.A plebe, enfurecendo-se porque novamente confessavam aqueles que primeiro tinham renegado, pôs-se a gritar contra Alexandre, considerando-o causador de tudo, e o governador, notando-o, perguntou-lhe quem era, e como respondesse: "Um cristão", encolerizou-se e condenou-o às feras. No dia seguinte entrou na arena junto com Atalo, já que o governador, para agradar a plebe, entregou novamente Atalo às feras.
51.Os que passaram por todos os instrumentos inventados para torturar no anfiteatro e sustentaram um grande combate, também eles foram ao final sacrificados. Alexandre nem soluçou nem murmurou um mínimo sequer, mas em seu coração conversava com Deus.
52.Atalo, por outro lado, quando foi posto sobre a cadeira de ferro e começou a queimar-se e de seu corpo desprendia-se o cheiro de carne queimada, disse dirigindo-se em latim à multidão: "Estais vendo! Isto é comer homens, o que estais fazendo. Nós, por outro lado, nem comemos homens nem fazemos nada de mau." E como lhe perguntassem que nome tem Deus, respondeu: "Deus não tem nome como um homem."
53.Depois de tudo isto, no último dia de lutas de gladiadores, levaram novamente Blandina junto com Pôntico, rapaz de uns quinze anos. Cada dia tinham sido apresentados para que vissem as torturas dos outros. Começaram obrigando-os a jurar pelos ídolos dos pagãos; mas como eles permaneciam firmes e até os menosprezaram, a multidão ficou enfurecida contra eles ao ponto de não ter pena da idade do rapaz nem respeito pelo sexo feminino.
54.Entregaram-nos a todos os horrores e fizeram-nos percorrer todo o ciclo de torturas, uma após a outra, tentando forçá-los a jurar, sem que o conseguissem. Efectivamente, Pôntico, animado por sua irmã tanto que até os pagãos podiam ver que era ela que o exortava e confortava, depois de sofrer generosamente todo tipo de tormentos, entregou o espírito.
55.E a bem-aventurada Blandina, a última de todos, como nobre mãe que infundiu ânimo a seus filhos e os enviou adiante vitoriosos para seu rei, depois de percorrer também ela todos os combates de seus filhos, voava para eles alegre e prazerosa da partida, como se fosse convidada a um banquete de bodas e não lançada às feras.
56.Depois dos açoites, depois da feras e depois das chamas, por último atiraram-na a um touro. Lançada ao alto longo tempo pelo animal, insensível já ao que lhe acontecia por sua esperança mantida em tudo o que havia crido e por sua conversação com Cristo, também ela foi sacrificada, enquanto os próprios pagãos confessavam que jamais entre eles uma mulher havia padecido tantos e tais suplícios.
57.Mas nem assim fartou-se sua loucura e crueldade para com os santos, porque, incitada por uma fera selvagem, aquela tribo selvagem e bárbara não podia calar-se facilmente. Sua cruel insolência tomou outro rumo particular: fartar-se nos cadáveres.
58.De fato, não lhes causava a menor vergonha terem sido vencidos, já que não raciocinavam como homens, mas inflamava-se ainda mais sua cólera, como a de uma fera, e assim, tanto o governador como a plebe demonstravam ter o mesmo ódio injusto contra nós, para que se cumprisse a Escritura: que o injusto continue em sua injustiça, e que o justo continue sendo justificado334.
59.Efectivamente, os que haviam perecido asfixiados no cárcere eram lançados aos cães, sendo vigiados noite e dia para evitar que algum dos nossos lhes fizesse as honras fúnebres. Também então expuseram os restos deixados pelas feras e pelo fogo, em parte despedaçados e em parte carbonizados, e durante alguns dias seguidos custodiaram com guarda militar as cabeças dos outros, junto com seus troncos, assim mesmo insepultos.
60. E sobre estes restos alguns resmungavam e rangiam os dentes, buscando tomar deles alguma vingança suplementar; outros riam-se e zombavam, ao mesmo tempo que engrandeciam seus ídolos, a quem atribuíam o castigos daqueles, e os mais moderados e que pareciam compadecer-se um pouco repetiam insultos dizendo: "Onde está seu Deus e de que lhes valeu sua religião, a qual preferiram inclusive a sua própria vida?"
61.Assim variada era a atitude daqueles; nós, por outro lado, afundávamos em grande dor porque não podíamos enterrar os corpos, já que nem a noite nos ajudava nisto, nem o dinheiro conseguia persuadir nem as súplicas abrandar, mas por todos os meios os custodiavam, como se no facto de que os corpos não receberem sepultura eles tivessem grande vantagem."
62.Em continuação a isto, depois de algumas outras coisas, dizem: "Assim pois, os corpos dos mártires, depois de serem expostos ao escárnio de todos os modos possíveis e de ficarem às intempéries durante seis dias, foram logo queimados e reduzidos a cinzas, que aqueles ímpios lançaram ao rio Ródano, que passa perto dali, para que nem sequer suas relíquias ficassem ainda visíveis sobre a terra.
63.E faziam isto pensando que poderiam vencer Deus e arrebatar daqueles seu novo nascimento, com a finalidade de que, como eles diziam, "nem sequer esperança tenham de ressurreição; persuadidos dela, estão introduzindo uma religião estranha e nova, desprezam os tormentos e vêm dispostos e alegres à morte: vejamos agora se vão ressuscitar e se seu Deus pode socorre-los e arrancá-los de nossas mãos".


322 Martírio significa originalmente "testemunho".
323 Eram considerados criminosos comuns.
324 1 Co 9:25.
325 Provavelmente pelo confector.
326 Is 27:1.
327 Cartaz obrigatório para condenados que eram cidadãos romanos, mas a mente do redactor pode estar mais próxima
ao cartaz sobre a cruz de Jesus (Mt 27:37; Mc 15:26; Lc 23:38; Jo 19:19).
328 A "Virgem Mãe" é a Igreja.
329 Ez 18:23; 33:11; 2 Pe 3:9.
330 Marco Aurélio na verdade atém-se em sua resposta à regra de Trajano em sua carta a Plínio.
331 Atalo seria uma excepção.
332 Mt 22:11-13.
333 At 19:9; 2 Pe 2:2.
334 Ap 22:11.

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