Boa Leitura!
1. Assim pois, se tomas outra vez em tuas mãos o livro V das Histórias de Josefo, leia a tragédia que lhes aconteceu então: "Para os ricos - diz - ficar era o mesmo que perder-se, pois, sob pretexto de que deserdavam, assassinavam qualquer um pelos seus bens. Com a fome crescia o desespero dos rebeldes, e dia a dia uma e outro se acendiam terrivelmente.
2.O trigo estava invisível, mas eles invadiam as casas e as revistavam. Então, se o encontravam, maltratavam-nos por ter negado; se não o encontravam, torturavam-nos por tê-lo escondido tão cuidadosamente. A prova de ter ou não ter eram os corpos dos desgraçados: os que ainda se aguentavam em pé pareciam ter alimentos em abundância; os que já estavam consumidos eram deixados em paz: parecia fora de propósito matar alguém que logo morreria de inanição.
3.Muitos davam secretamente seus bens em troca de uma medida de trigo se eram ricos; de cevada os mais pobres. Trancavam-se no mais oculto de suas casas e, impelidos pela necessidade, uns comiam o trigo cru; outros o coziam à medida que a necessidade e o medo ditavam.
4.Não se punha a mesa, antes, tiravam do fogo a comida ainda crua e a devoravam. O alimento era miserável e o espectáculo deplorável: os mais fortes tomando tudo e os fracos lamentando-se.
5. A fome excede todos os sofrimentos, mas nada ela destrói mais do que o senso de dignidade, pois o que em outro tempo seria tido como digno de respeito é depreciado em tempo de fome. Assim, as mulheres tiravam os alimentos da própria boca dos maridos, os filhos da de seus pais e, o que é demasiado lamentável, as mães das bocas de seus filhos, e enquanto os seres mais queridos se consumiam entre suas mãos, nada os refreava de tirar-lhes as últimas gotas que os permitiam viver.
6.Mas, mesmo sendo esta sua comida, não permanecia oculta. Por toda parte caíam-lhes em cima os rebeldes em busca dessa presa. Quando viam uma casa fechada, era sinal de que os ocupantes tinham conseguido comida, e imediatamente arrombavam as portas e se precipitavam para dentro, e só lhes faltava apertar as gargantas e arrancar-lhes o bocado.
7.Golpeavam os anciãos que não soltavam seus alimentos e arrancavam o cabelo das mulheres que escondiam o que tinham nas mãos. Não havia compaixão nem pelos velhos nem pelas crianças, mas levantavam as crianças que seguravam seu bocado e as deixavam cair contra o solo. Com aqueles que, adiantando-se a seu ataque, engoliam antes o que tentariam tirar-lhes, eram ainda mais cruéis, como se tivessem sofrido uma injustiça.
8.Usavam espantosos métodos de tortura para descobrir comida: obstruíam a uretra dos desgraçados com grãos de legumes e trespassavam-lhes o recto com varas pontiagudas. Padeciam-se tormentos que espantam apenas por ouvi-los, até confessar a posse de um único pedaço de pão e descobrir um só punhado de farinha escondida.
9.Mas os torturadores não passavam fome alguma - sua crueldade seria menor se atendesse a uma necessidade -, mas exercitavam seu louco orgulho e iam ajuntando provisões para os dias vindouros.
10.Seguiam os que à noite se arrastavam até os postos romanos para recolher legumes silvestres e ervas. Quando estes pensavam que já haviam escapado dos inimigos, aqueles tiravam-lhes o que levavam, e muitas vezes, se os infelizes suplicavam invocando pelo terrível nome de Deus que lhes deixassem uma parte do que com tanto perigo tinham trazido, não lhes deixavam nem isto, e ainda podiam dar-se por satisfeitos se, além de serem despojados, não eram assassinados."
11. A isto, depois de outras coisas, acrescenta: "Com o êxodo cortou-se para os judeus também toda esperança de salvação, e a fome, abatendo-se sobre cada casa e cada família, ia devorando o povo. Os terrenos enchiam-se de mulheres e de crianças de peito mortos, e as vielas de cadáveres de anciãos.
12. Rapazes e jovens, inchados, vagavam pelas praças como espectros e caíam mortos onde a dor os colhesse. Os doentes não tinham forças para enterrar seus parentes, e os que teriam podido negavam-se, por serem tantos os mortos e pela incerteza de seu próprio destino. De fato, muitos caíam mortos junto aos que tinham acabado de enterrar, e muitos iam a sua tumba antes que a necessidade o impusesse.
13.Não havia lamentos nem choro por estas calamidades: a fome afogava os sentimentos, e os que lentamente morriam contemplavam com olhos secos os que morriam antes deles. Um silêncio profundo e uma noite carregada de morte envolviam a cidade. E pior do que tudo isto eram os ladrões.
14.Penetravam nas casas como ladrões de tumbas, despojavam os cadáveres e, depois de arrancar os panos que cobriam os corpos, iam embora entre risadas. Testavam o fio de suas espadas nos cadáveres e, provando o ferro, atravessavam alguns, que já caídos, ainda viviam. Mas se alguém lhes pedia que utilizassem nele sua força e sua espada, desdenhavam-no e abandonavam-no à fome. E todo o que expirava olhava fixamente para o templo, porque deixava vivos atrás de si os rebeldes.
15.Estes, no começo, por não suportar o fedor, mandavam enterrar os mortos às custas do tesouro público, mas logo, quando não davam mais conta, atiravam-nos sobre as muralhas aos barrancos. Quando Tito fez a ronda por aqueles barrancos e viu que estavam repletos de cadáveres e o espesso líquido escuro que manava por debaixo dos cadáveres em putrefacção, pôs-se a gemer e levantando as mãos tomava a Deus por testemunha de que aquilo não era obra sua."
16.Depois de acrescentar mais algumas coisas, continua dizendo: "Eu não poderia deixar de expressar o que o sentimento me ordena: creio que, se os romanos tivessem demorado em sua acção contra os culpados, o abismo teria engolido a cidade, ou as águas a teriam submergido, ou teria sido alcançada pelos raios de Sodoma, pois a geração que continha era muito mais ímpia do que as que sofreram estes castigos. E pela demência criminosa destas pessoas, o povo inteiro pereceu com elas."
17. E no livro VII escreve o seguinte: "Foi infinito o número dos que pereceram na cidade por fome, e os padecimentos eram indizíveis. Em cada casa havia guerra como se aparecesse em um canto uma sombra de comida, e os que mais se queriam entre si pegavam-se aos tapas para tirar o miserável sustento da vida. Nem sequer nos moribundos confiava a necessidade.
18.Os ladrões revistavam inclusive os que estavam expirando, para que alguém não escondesse alimentos sob a roupa e fingisse estar morto. Outros, com a boca aberta por efeito da desnutrição, andavam cambaleando e desancados como cães raivosos e empurravam as portas como fazem os bêbados e, em sua impotência, entravam nas mesmas casas duas ou três vezes em uma só hora.
19.A necessidade fazia com que levassem tudo à boca, e quando recolhiam alimentos até indignos dos animais irracionais mais repugnantes, levavam-no para comer escondido, a assim acabaram por não abster-se nem dos cintos e dos calçados, tiravam as peles de seus escudos e as mastigavam. Para alguns até fiapos de ervas velhas eram alimento, outros recolhiam fibras de plantas e vendiam uma porção mínima por quatro dracmas áticos.
20.E o que haveria para dizer sobre a impudência das pessoas presas do desânimo? Porque vou mostrar uma obra sua que não está narrada nem entre os gregos nem entre os bárbaros, espantosa de dizer, incrível de escutar. Eu pelo menos, para não dar a impressão de que estou inventando para a posteridade, de bom grado omitiria esta calamidade se não tivesse uma infinidade de testemunhos contemporâneos meus. Além disso prestaria pouco serviço a minha pátria se renunciasse a relatar os males que de fato padeceram.
21.Uma mulher das que habitavam na outra margem do Jordão, chamada Maria, filha de Eleazar, da aldeia de Batezor - nome que significa "casa de hissôpo" - notável por suas riquezas e sua linhagem, fugiu para Jerusalém com o resto da multidão e com esta compartilhava o assédio.
22.Os tiranos tiraram-lhe todos os bens que havia reunido e levado consigo à cidade desde Peréia. O resto de seu enxoval e o pouco alimento que encontraram foi sendo roubado por pessoas armadas que entravam a cada dia. Foi grande a indignação daquela pobre mulher, que muitas vezes injuriava e maldizia os ladrões para excitá-los contra si mesma.
23.Mas como ninguém a matava, movidos pela ira ou pela compaixão, e cansada de buscar alimentos para outros, que já eram impossíveis de encontrar em parte alguma, com as entranhas e a medula trespassadas pela fome, tomou como conselheiras a cólera e a necessidade e se lançou contra natureza, agarrou o filho que tinha - criança ainda de peito - e disse:
24.Criatura desgraçada! Em meio à guerra, à fome e à revolta, para quem vou guardar-te? Entre os romanos, se por acaso cairmos vivos em suas mãos, a escravidão; mas a fome se antecipa à própria escravidão e os rebeldes são ainda piores do que ambas as coisas. Eia! Seja alimento para mim, maldição para os rebeldes e fábula para o mundo: a única coisa que faltava às calamidades dos judeus!
25.E enquanto dizia estas coisas, deu morte a seu filho. Depois assou-o e comeu a metade; o resto guardou escondido. Em seguida apareceram os rebeldes, e farejando a ímpia exalação, ameaçaram a mulher de degolá-la imediatamente se não lhes mostrasse o que tinha preparado. Ela então lhes disse que para eles guardara uma boa porção e revelou o que restava de seu filho.
26.O horror e o pasmo surpreendeu-os na hora e ficaram cravados no lugar diante daquele espectáculo. Mas ela disse: é meu próprio filho e eu o fiz. Comei, pois também eu comi. Não sejais mais brandos do que uma mulher nem mais compassivos do que uma mãe. Mas se por escrúpulos piedosos recusais meu sacrifício, eu já comi por vós, fique o resto também para mim.
27.Depois disto, aqueles foram-se tremendo: foi a única vez em que se acovardaram e que, de malgrado, cederam à mãe tal comida. Em seguida a cidade inteira encheu-se de horror, e todo o mundo estremeceu ao ser-lhe apresentado frente aos olhos aquele crime como sendo seu próprio.
28. E entre os esfomeados havia pressa para morrer e uma certa inveja pelos que haviam se adiantado morrendo antes de ouvir e contemplar semelhantes horrores." Esta foi a recompensa dos judeus por sua iniquidade e impiedade para com o Cristo de Deus.
terça-feira, 20 de julho de 2010
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